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terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Um manifesto pelo bem-estar para uma sociedade próspera

Preâmbulo
Os brasileiros vivem mais e são três vezes mais ricos que seus pais e avós eram 50 anos atrás, mas não são mais felizes. Apesar da evidência de um declínio no bem-estar nacional, os governos continuam a colocar os interesses econômicos em primeiro lugar. A obsessão pelo crescimento econômico significa que outras coisas que poderiam melhorar nosso bem-estar são sacrificadas.
Há uma preocupação generalizada da comunidade de que os valores do mercado — individualismo, egoísmo, materialismo, competição — estão expulsando os valores mais desejáveis de confiança, equilíbrio, respeito mútuo e generosidade. Muitas pessoas se sentem alienadas do processo político. Os principais partidos parecem muito iguais e pensam no progresso apenas em termos materiais.
O desafio do nosso tempo é construir uma nova política que esteja empenhada, sobretudo, em melhorar nosso bem-estar.
Bem-estar
Ao longo da história, estudiosos têm dito que a felicidade não é um objetivo, mas uma consequência de como vivemos, que ela surge de se contentar com o que se tem. Hoje, é vendida a nós uma mensagem diferente: de que seremos felizes somente se tivermos mais dinheiro e mais das coisas que o dinheiro compra. A experiência humana e a pesquisa científica não apoiam essa crença.
Nosso bem-estar é moldado por nossos genes, nossa criação, nossas circunstâncias e escolhas pessoais e pelas condições sociais em que vivemos. Nosso bem-estar coletivo é melhorado se vivemos em uma sociedade pacífica, próspera e que nos apoie. Sendo assim, a promoção do bem-estar deve ser uma tarefa pública e pessoal.
Muitas vezes, pensamos no bem-estar como felicidade, mas ele é muito mais do que isso. Ter bem-estar é ter significado nas nossas vidas, desenvolver-se como pessoa e sentir que nossas vidas são gratificantes e valem a pena.
O bem-estar provém de se ter uma rede de relacionamentos e interesses. Família e amigos, trabalho, atividades de lazer e crenças espirituais podem aumentar nosso bem-estar. A intimidade, o sentido de pertencimento e o apoio oferecidos por relações pessoais íntimas são de grande valor. Claro que não há dúvida de que a pobreza continua sendo um problema sério no Brasil e muitos brasileiros ainda não tem um padrão de vida razoável proporcionado por se ter uma casa, um carro, saúde, alimentação e educação de qualidade. Mas já foi comprovado por diversas pesquisas que confortos materiais são essenciais até certo ponto. Ou seja, muito mais dinheiro, após satisfazer essas necessidades básicas, adicionaria pouco ao bem-estar das pessoas.
O que os governos podem fazer?
Os governos não podem legislar para nos fazer felizes, mas muitas coisas que eles fazem afetam nosso bem-estar. Leis podem danificar ou melhorar a qualidade de nossas vidas de trabalho; políticas governamentais podem proteger o meio ambiente ou violá-lo; a educação de nossos filhos depende da qualidade das escolas; políticas fiscais podem fazer a diferença entre uma sociedade justa e injusta; e a coesão das nossas comunidades é afetada pelo planejamento da cidade e por planos de transporte.
Esse manifesto propõe nove áreas em que um governo poderia e deveria promulgar políticas para melhorar o bem-estar nacional.
1.     Proporcionar trabalho gratificante
Um trabalho gratificante é vital para o nosso bem-estar. Empregos inseguros, estressantes e insatisfatórios diminuem nosso bem-estar. Um trabalho de alta qualidade pode nos proporcionar um propósito, desafios e oportunidades. Através dele, podemos desenvolver nossas capacidades, começar a perceber nosso potencial e atender a muitas de nossas necessidades sociais. Em suma, o trabalho gratificante é essencial se quisermos prosperar. Locais de trabalho que oferecem empregos seguros e recompensadores devem ser incentivados. A flexibilidade no local de trabalho, incluindo empregos de qualidade de meio período, deve funcionar com base nos interesses dos trabalhadores e dos empregadores.
O desemprego é mais prejudicial do que simplesmente a perda da renda, e menosprezar uma pessoa desempregada só serve para aumentar sua ansiedade e seu sentimento de exclusão. Buscar o emprego pleno é essencial para uma economia de bem-estar, assim como é assegurar padrões mínimos decentes no local de trabalho.
O trabalho satisfatório pode ser encontrado dentro e fora de casa. Trabalhar em casa e nas comunidades é essencial para a saúde social, mas é algo ignorado porque está fora da economia oficial. Os governos deveriam valorizar esse trabalho, e os empregadores precisam se adaptar às realidades da vida familiar. A licença-maternidade, licença-paternidade, licença fornecida ao cuidador e a licença-saúde não devem ser considerados custos, mas sim essenciais para o nosso bem-estar.
2.     Resgatar o nosso tempo
Os brasileiros trabalham muitas horas. Nós sistematicamente superestimamos a quantidade de bem-estar associado a altos rendimentos financeiros e a longas horas de trabalho. Como resultado, nossas famílias, nossa saúde e nosso sentimento de conquista sofrem.
Se o Brasil deseja prosperar de verdade, nossas vidas profissionais devem contribuir para o nosso bem-estar e o de nossas famílias, e não sugá-los. Passar mais tempo com nossas famílias, amigos e comunidades tornaria a maioria de nós mais feliz, e nossos locais de trabalho devem ser reformulados para permitir que resgatemos o nosso tempo.
Para florescer como uma nação, não apenas como uma economia, precisamos limitar as horas de trabalho através da redução da semana de trabalho máxima para 35 horas inicialmente e mais depois disso. Outros países desenvolvidos reduziram as horas de trabalho sem o caos muitas vezes previsto. Se tirássemos os ganhos de produtividade na forma de uma semana de trabalho mais curta, em vez de em salários mais elevados, poderíamos melhorar nossa qualidade de vida e criar novas oportunidades de trabalho, tudo sem qualquer redução da remuneração.
3.     Proteger o meio ambiente
Um ambiente natural saudável e diversificado é valioso por si só e também é essencial para o bem-estar humano. Sabemos que o bem-estar das gerações futuras será fortemente afetado se não conseguirmos combater definitivamente a perda da biodiversidade, a poluição e o desperdício. As alterações climáticas, em particular, representam uma ameaça grave e exigem do governo medidas imediatas e de longo alcance.
Podemos fazer muito mais do que fizemos até o momento. Devemos aumentar os impostos sobre as atividades ambientais prejudiciais, tais como a queima de combustíveis fósseis, e reduzir os impostos sobre as atividades socialmente benéficas, como o fornecimento de trabalho gratificante. Devemos tornar a geração de resíduos muito cara e recompensar as empresas e residências que reduzem seu consumo e reciclam materiais.
4.     Repensar a educação
Nossas escolas devem se dedicar a criar jovens capazes, confiantes e emocionalmente maduros preparados para enfrentar as vicissitudes da vida.
Ainda insistimos em tornar o ensino médio e as universidades mais orientadas para a vocação. Como resultado, os alunos aprendem menos sobre si mesmos e sobre as sociedades ao seu redor. Um maior enfoque no bem-estar físico, emocional e moral das crianças — em vez de em resultados de testes competitivos — produziria jovens mais felizes e mais saudáveis.
Devemos parar de transformar universidades em empresas que vendem diplomas e torná-las a visão crítica e a consciência da sociedade, lugares onde os estudantes floresçam como seres humanos e onde os acadêmicos sintam-se livres para questionar instituições poderosas, sem medo de vitimização.
5.     Investir na primeira infância
As crianças precisam de muita atenção individual em seus primeiros anos. A licença parental compartilhada deve ser ampliada para cobrir os dois primeiros anos de vida de uma criança. Os pais também precisam de apoio para que possam fazer o melhor trabalho para seus filhos. A adolescência também é um momento importante. Os pais precisam participar ativamente de toda a jornada de desenvolvimento.
6.     Desencorajar o materialismo e promover uma publicidade responsável
Comprar uma determinada marca de margarina não pode nos dar uma família feliz, e possuir um carro com tração nas quatro rodas não nos livrará de vidas monótonas. Mas os anunciantes procuram nos convencer do contrário. A publicidade nos torna mais materialistas, apesar de sabermos que as pessoas que são mais materialistas são geralmente mais egocêntricas, menos voltadas para a comunidade e menos felizes. O materialismo também é ruim para o meio ambiente.
Os marketeiros sequestraram os meios de comunicação e a maioria dos nossos eventos culturais, e é impossível escapar de sua influência diária. Precisamos de zonas comercialmente livres em nossas cidades e de limites para a construção de complexos de compras, como shopping centers. E os governos deveriam usar políticas fiscais e de aposentadoria para ajudar as pessoas que querem mudar para estilos de vida menos materialistas.
Os anunciantes se aproveitam especialmente das crianças, porque sabem que elas não têm a capacidade de distinguir entre fatos e a ficção publicitária. Como acontece na Suécia, a publicidade dirigida a crianças com menos de 12 anos deveria ser proibida, e os códigos de conduta para a publicidade deveriam ter consequência legal para que o marketing irresponsável e enganoso seja proibido.
7.     Construir comunidades e relacionamentos
Uma sociedade próspera é caracterizada por comunidades vibrantes, resilientes e sustentáveis. A solidão e o isolamento causam muita infelicidade, especialmente entre pais solteiros, pessoas desempregadas, idosos que vivem sozinhos e pessoas com deficiência e seus cuidadores.
Em vez de criticar os pais solteiros que fazem o melhor que podem, deveríamos apoiá-los. Em vez de julgar as pessoas por sua sexualidade, deveríamos encorajar todos os relacionamentos amorosos e solidários. E precisamos ajudar as pessoas a desenvolver as habilidades para construir relacionamentos familiares mais fortes.
Todos nós dependemos do cuidado de outras pessoas em algum momento de nossas vidas. Os cuidados são prestados por pais, filhos, amigos e outras pessoas. Precisamos valorizar mais todos os cuidadores. Os governos e empregadores deveriam fazer muito mais para apoiar pessoas que trabalham como cuidadores.
Os governos também deveriam apoiar a participação em organizações comunitárias, especialmente entre os grupos marginalizados. Os voluntários contribuem enormemente para nosso bem-estar e precisam ser reconhecidos e recompensados.
8.    Uma sociedade mais justa
Uma gestão econômica forte será sempre necessária, mas, em vez de um foco estreito no crescimento do PIB, os objetivos deveriam incluir a construção de infraestruturas públicas e a redução das desigualdades sociais e regionais. O agravamento das disparidades na renda e no acesso aos serviços cria ressentimento e desarmonia.
Em vez de culpar as vítimas, uma sociedade de bem-estar reconheceria que algumas pessoas são deixadas para trás pelo mercado. Um sistema mais justo de tributação e gastos governamentais — incluindo melhores serviços públicos e apoio à renda para aqueles menos capazes de competir no mercado — aumentaria o bem-estar social.
9.     Medir o que importa
O crescimento econômico é tratado como a panaceia para nossos males. Mas, para sociedades abastadas, o crescimento do PIB demonstrou não ter quase nenhuma conexão com melhorias no bem-estar nacional. Incêndios florestais, acidentes de carro e ondas de crime aumentam o PIB, mas são coisas que não nos deixam em uma situação melhor. O PIB não leva em conta como aumentos na renda são distribuídos ou o prejuízo para o ambiente natural que a atividade econômica pode causar.
Precisamos de um conjunto de medidas de prestação de contas nacionais de bem-estar para que possamos monitorar nosso progresso. Elas devem apresentar um relatório sobre a qualidade do trabalho, o estado de nossas comunidades, as taxas de criminalidade, nossa saúde, a força de nossos relacionamentos e o estado do meio ambiente. Os governos deveriam ser julgados por quanto o nosso bem-estar melhora, e não por quanto a economia se expande.
Rumo a uma sociedade próspera
A questão para o Brasil no século 21 não é simplesmente expandir a economia. Mas também, e talvez principalmente, como podemos usar nosso novo padrão de vida para construir uma sociedade próspera dedicada a melhorar nosso bem-estar.
Muitos brasileiros estão preocupados com o declínio dos padrões morais. Nossa preocupação é que nos tornamos muito egoístas, materialistas e superficiais e ansiamos por uma sociedade baseada no respeito mútuo, equilíbrio e generosidade de espírito.
As alterações propostas no presente manifesto inspirariam comunidades mais saudáveis, relacionamentos pessoais mais fortes, locais de trabalho mais felizes, um melhor equilíbrio entre vida profissional e pessoal, menos comercialização e maior proteção ambiental.
Uma sociedade próspera não é uma esperança sem fundamento. A democracia brasileira oferece às pessoas a oportunidade de se livrarem do seu cinismo e de se comprometerem a criar um futuro melhor.

Traduzido e adaptado por Ana Paula Carvalho Viegas com base no original do The Australia Institute, encontrado em www.wellbeingmanifesto.net (site em inglês). Apesar das diferenças entre as realidades da Austrália e do Brasil, o manifesto australiano é altamente relevante para nós brasileiros.
Alguns materiais consultados para obter algumas estatísticas: Brasil em Desenvolvimento 2014, Relatório de Desenvolvimento Humano do Brasil de 2009/2010.